domingo, 30 de junho de 2013

Herdade do Esporão





 
 



Sobre o maior evento da cidade de Évora

Feira de S. João «passou à história»? 

Francisco Bilou, Alentejo em Linha em Junho 25, 2013

Nesta teimosa sobrevivência a velha feira foi deixando de trazer novidade e encanto.
Agora que começou mais uma feira de S. João talvez seja este o melhor momento para refletir sobre alguns dos traços da sua identidade histórica, sem esquecer, naturalmente, qual o papel que lhe pode caber no futuro como principal festividade popular de Évora e, nessa medida, como momento único de encontro de todos os eborenses.
É sabido historicamente que a Feira de S. João é de todas as feiras da cidade a única que atingiu expressão regional, sobretudo a partir da abertura da ligação ferroviária a Évora (1863). Precisamente há 150 anos (e lá deixámos passar em branco mais este marco histórico no desenvolvimento da cidade…), num «S. João chuvoso», a feira já havia adquirido as suas principais características festivas: um certame agroalimentar e tauromáquico, pautado pelas diversões e curiosidades vindas de fora.
Esta última característica é, aliás, muito importante para consolidação popular do evento. De facto, se nesse distante ano de 1863 a atração foi o «gigante do Minho», já então a fotografia não era novidade na feira, a Évora haveria de chegar, à cadência anual das festividades joaninas, o teatro, o circo «à americana» (por mão das melhores companhias nacionais e estrangeiras, aproveitando precisamente a deslocação de comboio), as primeiras imagens animadas percursoras do cinema, então chamadas de «kinetografone» (1987), a cerveja de pressão (1905), a câmara frigorífica (que permitiu os primeiros «gelados», até aí «sorvetes»), o primeiro balão aerostático, o primeiro estrado automobilístico elétrico (1939) (com três minutos de viagem e protesto geral pelo exagero do preço), o primeiro «fogo preso» e tantas, tantas outras «novidades» que fizeram o encanto de miúdos e graúdos durante décadas.
No entanto, uma das maiores virtudes da Feira de S. João foi o seu «ecletismo» sociocultural, económico e recreativo. Desde logo por ser o espaço de encontro de todos os eborenses, ainda que estes bem compartimentados nas suas hierarquias sociais.
Depois por privilegiar tanto o certame agroalimentar e o cartel tauromáquico como a tenda do bufarinheiro e o divertimento popular. Tudo movido pelas «novidades», que competiam por atrair a atenção de milhares de curiosos, ou não fossem eles potenciais clientes (ao contrário do que acontece hoje em dia).
Foi esta «matriz eclética» da Feira de S. João que perdurou ao longo do século XX, resistindo à alteração dos hábitos de consumo, à transformação do mundo rural e até ao imediatismo televisivo da notícia e do espetáculo.
Nesta teimosa sobrevivência (bem reveladora, aliás, de uma cidade conservadora e «empanturrada de soberba», como a descreveu o escritor Vergílio Ferreira), a velha Feira de S. João foi deixando de trazer novidade e encanto e, consequentemente, perdendo fulgor entre as feiras e certames expositivos regionais, sobretudo entre aqueles que, a tempo, se «especializaram» em áreas de oferta temática.
Hoje o que a mantém viva é, no essencial, a inércia da «tradição» e, ainda assim, presa aos dois derradeiros traços genuinamente «tradicionais»: os «comes e bebes» e o «passeio às exposições», o que é muito pouco para uma feira centenária, convenhamos.
E se este é o atual retrato da nossa feira, a reflexão que hoje se impõe fazer é esta: poderemos nós salvaguardar a identidade histórica da principal festa popular de Évora como momento de união dos eborenses, mantendo-a atrativa, inclusiva e sustentável?
Talvez. Mas é preciso mudar conceitos, hábitos adquiridos e protagonistas da sua arquitetura. Porque antes de mais a Feira tem de ser um projeto coletivo da cidade, os seus custos suportados maioritariamente por todos aqueles que dela beneficiem do ponto de vista económico e, desde logo, repensada na sua dimensão espacial, limitando o que é a área da «feira» ao terrado do Rossio, tendo para isso o cuidado de nele ir fixando infraestruturas definitivas, sobretudo as elétricas (já agora bem pensadas para que não impeçam outros usos do espaço).
E só se a «feira» propriamente dita compartilhar o seu «programa festivo» com o Centro Histórico, através da dinâmica dos espaços de cultura e de animação sociocultural existentes intramuros, consequentemente inclusiva às culturas locais, que é como quem diz, às expressões identitárias do que somos e do que fazemos.
Se tudo isto fosse possível e «consensualizável», quem sabe já a partir da próxima edição da Feira, talvez o Teatro Municipal Garcia de Resende pudesse ter um novo protagonismo como palco de cultura; talvez a animação de rua, fosse ela qual fosse, pudesse voltar à cidade (alguém ainda se lembra do «desfile do traje»?); talvez a Praça de Giraldo pudesse enquadrar, por exemplo, uma «feira da arte» (fruto do trabalho das nossas escolas de ensino artístico, naturalmente); talvez uma qualquer boa exposição temática valesse uma demorada visita ao Palácio de D. Manuel.
Talvez o coreto (que teria que ser finalmente restaurado para o efeito) voltasse a ser animado pelas bandas filarmónicas e o Jardim Público com isso recuperasse alguma vida própria; talvez o terrado do Rossio de S. Brás tivesse que ser redesenhado para uso exclusivo da «feira tradicional» e das atividades económicas e institucionais; talvez o «Monte Alentejano», que já faz parte da memória da Feira de S. João, voltasse a ser palco de mostras de artesanato e/ou de produtos tradicionais; talvez que no espaço das «tasquinhas» se pudesse garantir uma verdadeira «feira dos sabores e tradições do Alentejo» em sintonia com o resto do país (porque o património cultural também pressupõe a troca e a descoberta dos outros).
Ttalvez que as sociedades recreativas ou, quem sabe, os comerciantes de uma praça ou de uma rua do Centro Histórico pudessem dinamizar o seu próprio S. João (vitalidade possível de acontecer como provou recentemente a iniciativa «Noites da Alcárcova»); enfim, talvez se pudesse permitir o estacionamento automóvel (ainda que tarifado a custos controlados a reverter a favor da própria feira) no eixo entre as escolas do Rossio e a Arena d’Évora, resolvendo-se assim a necessidade de um grande parque de acolhimento dos visitantes…
Não sei se tudo isto será concretizável alguma vez e de uma só vez, mas julgo que só uma «feira» dimensionada à atual realidade económica e financeira e uma «festa» extensiva ao Centro Histórico, como expressão pública do que somos e do que fazemos, pode reabilitar a nossa velha Feira de S. João.